A IMPORTÂNCIA DO ATO DE LER- Paulo Freire
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de
“ler” o mundo particular em que me movia – e até onde não sou traído
pela memória –, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que
me vou entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, a
experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo
então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores,
algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua
sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me
experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e
aventuras maiores.
A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu
sótão, seu terraço – o sítio das avencas de minha mãe –, o quintal
amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele
engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele
mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade
perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras.
Os
“textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto – em cuja
percepção me experimentava e, quanto mais o fazia, mais aumentava a
capacidade de perceber – se encarnavam numa série de coisas, de
objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia apreendendo no meu trato com
eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais.
Os
“textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no
canto dos pássaros – o do sanhaço, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do
bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por
fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; ás
águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios,
riachos.
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele
contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu,
nas suas cores, nos seus movimentos, na cor das folhagens, na forma das
folhas, no cheiro das flores – das rosas, dos jasmins –, no corpo das
árvores, na casca dos frutos. Na tonalidade diferente de cores de um
mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o
verde da manga-espada inchada; o amarelo-esverdeado da mesma manga
amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. (...)
Daquele
contexto – o do meu mundo imediato – fazia parte, por outro lado, o
universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os
seus gostos, os seus receios, os seus valores. Tudo isso ligado a
contextos mais amplos que o do meu mundo imediato e de cuja existência
eu não podia sequer suspeitar. (...)
Mas, é importante dizer, a
“leitura” do meu mundo, que me foi sempre fundamental, não fez de mim
um menino antecipado em homem, um racionalista de calças curtas. A
curiosidade do menino não iria distorcer-se pelo simples fato de ser
exercida, no que fui mais ajudado do que desajudado por meus pais. E
foi com eles, precisamente, em certo momento dessa rica experiência de
compreensão do meu mundo imediato que eu comecei a ser introduzido na
leitura da palavra.
A decifração da palavra fluía naturalmente
da “leitura” do mundo particular. Não era algo que se estivesse dando
superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal de minha
casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo
maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.
In A importância do ato de ler. 29a. ed. S. Paulo: Cortez, 1994, p. 12-15.
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